domingo, 18 de novembro de 2007

A globalização atual não é irreversível (Milton Santos)

A globalização atual é muito menos um produto das idéias atualmente possíveis e, muito mais, o resultado de uma ideologia restritiva adrede estabelecida. Todas as realizações atuais, oriundas de ações hegemônicas, têm como base construções intelectuais fabricadas antes mesmo da fabricação das coisas e das decisões de agir. A intelectualização da vida social, recentemente alcançada, vem acompanhada de uma forte ideologização.

A dissolução das ideologias

Todavia, o que agora estamos assistindo em toda parte é uma tendência à dissolução dessas ideologias, no confronto com a experiência vivida dos povos e dos indivíduos, O próprio credo financeiro, visto pelas lentes do sistema econômico a que deu origem, ou examinado isoladamente, em cada país, aparece menos aceitável e, a partir de sua contestação, outros elementos da ideologia do pensamento único perdem força.

Além das múltiplas formas com que, no período histórico atual, o discurso da globalização serve de alicerce às ações hegemônicas dos Estados, das empresas e das instituições internacionais, o papel da ideologia na produção das coisas e o papel ideológico dos objetos que nos rodeiam contribuem,juntos, para agravar essa sensação de que agora não há outro futuro senão aquele que nos virá como um presente ampliado e não como outra coisa. Daí a pesada onda de conformismo e inação que caracteriza nosso tempo, contaminando os jovens e, até mesmo, uma densa camada de intelectuais.

É muito difundida a idéia segundo a qual o processo e a forma atuais da globalização seriam irreversíveis. Isso também tem a ver com a força com a qual o fenômeno se revela e instala em todos os lugares e em todas as esferas da vida, levando a pensar que não há alternativas para o presente estado de coisas.

No entanto, essa visão repetitiva do mundo confunde o que já foi realizado com as perspectivas de realização. Para exorcizar esse risco, devemos considerar que o mundo é formado não apenas pelo que já existe (aqui, ali, em toda parte), mas pelo que pode efetivamente existir (aqui, ali, em toda parte). O mundo datado de hoje deve ser enxergado como o que na verdade ele nos traz, isto é, um conjunto presente de possibilidades reais, concretas, todas factíveis sob determinadas condições.

O mundo definido pela literatura oficial do pensamento único é, somente, o conjunto de formas particulares de realização de apenas certo número dessas possibilidades. No entanto, um mundo verdadeiro se definirá a partir da lista completa de possibilidades presentes em certa data e que incluem não só o que já existe sobre a face da Terra, como também o que ainda não existe, mas é empiricamente factível. Tais possibilidades, ainda não realizadas,já estão presentes como tendência ou como promessa de realização. Por isso, situações como a que agora defrontamos parecem definitivas, mas não são verdades eternas.

A pertinência da utopia

É somente a partir dessa constatação, fundada na história real do nosso tempo, que se torna possível retomar, de maneira concreta, a idéia de utopia e de projeto. Este será o resultado da conjunção de dois tipos de valores. De um lado, estão os valores fundamentais, essenciais, fundadores do homem, válidos em qualquer tempo e lugar, como a liberdade, a dignidade, a felicidade; de outro lado, surgem os valores contingentes, devidos à história do presente, isto é, à história atual. A densidade e a factibilidade histórica do projeto, hoje, dependem da maneira como empreendamos sua combinação.

Por isso, é lícito dizer que o futuro são muitos; e resultarão de arranjos diferentes, segundo nosso grau de consciência, entre o reino das possibilidades e o reino da vontade. É assim que iniciativas serão articuladas e obstáculos serão superados, permitindo contrariar a força das estruturas dominantes, sejam elas presentes ou herdadas. A identificação das etapas e os ajustamentos a empreender durante o caminho dependerão da necessária clareza do projeto.

Conforme já mencionamos, alguns dados do presente nos abrem, desde já, a perspectiva de um futuro diferente, entre outros: a tendência à mistura generalizada entre povos; a vocação para uma urbanização concentrada; o peso da ideologia nas construções históricas atuais; o empobrecimento relativo e absoluto das populações e a perda de qualidade de vida das classes médias; o grau de relativa “docilidade” das técnicas contemporâneas; a “politização generalizada” permitida pelo excesso de normas (Maria Laura Silveira, Um país, uma região. Fim de século e modernidades na Argentina, 1999); e a realização possível do homem com a grande mutação que desponta.

Lembramos, também, que um dos elementos, ao mesmo tempo ideológico e empiricamente existencial, da presente forma de globalização é a centralidade do consumo, com a qual muito têm a ver a vida de todos os dias e suas repercussões sobre a produção, as formas presentes de existência e as perspectivas das pessoas. Mas as atuais relações instáveis de trabalho, a expansão de desemprego e a baixa do salário médio constituem um contraste em relação à multiplicação dos objetos e serviços, cuja acessibilidade se torna, desse modo, improvável, ao mesmo tempo que até os consumos tradicionais acabam sendo difíceis ou impossíveis para uma parcela importante da população. É como se o feitiço virasse contra o feiticeiro.

Essa recriação da necessidade, dentro de um mundo de coisas e serviços abundantes, atinge cada vez mais as classes médias, cuja definição, agora, se renova, à medida que, como também já vimos, passam a conhecer a experiência da escassez. Esse é um dado relevante para compreender a mudança na visibilidade da história que se está processando. De tal modo, às visões oferecidas pela propaganda ostensiva ou pela ideologia contida nos objetos e nos discursos opõem-se as visões propiciadas pela existência. É por meio desse conjunto de movimentos, que se reconhece uma saturação dos símbolos pré-construídos e que os limites da tolerância às ideologias são ultrapassados, o que permite a ampliação do campo da consciência.

Nas condições atuais, essa evolução pode parecer impossível, em vista de que as soluções até agora propostas ainda são prisioneiras daquela visão segundo a qual o único dinamismo possível é o da grande economia, com base nos reclamos do sistema financeiro. Por exemplo, os esforços para restabelecer o emprego dirigem-se, sobretudo, quando não exclusivamente, ao circuito superior da economia. Mas esse não é o único caminho e outros remédios podem ser buscados, segundo a orientação político-ideológica dos responsáveis, levando em conta uma divisão do trabalho vinda “de baixo”, fenômeno típico dos países subdesenvolvidos (M. Santos, O espaço dividido, 1978), mas que agora também se verifica no mundo chamado desenvolvido.

Por outro lado, na medida em que as técnicas cada vez mais se dão como normas e a vida se desenrola no interior de um oceano de técnicas, acabamos por viver uma politização generalizada. A rapidez dos processos conduz a uma rapidez nas mudanças e, por conseguinte, aprofunda a necessidade de produção de novos entes organizadores. Isso se dá nos diversos níveis da vida social. Nada de relevante é feito sem normas. Neste fim do século XX, tudo é política. E, graças às técnicas utilizadas no período contemporâneo e ao papel centralizador dos agentes hegemônicos, que são planetários, torna-se ubíqua a presença de processos distorcidos e exigentes de reordenamento. Por isso a política aparece como um dado indispensável e onipresente, abrangendo praticamente a totalidade das ações.

Assistimos, assim, ao império das normas, mas também ao conflito entre elas, incluindo o papel cada vez mais dominante das normas privadas na produção da esfera pública. Não é raro que as regras estabelecidas pelas empresas afetem mais que as regras criadas pelo Estado. Tudo isso atinge e desnorteia os indivíduos, produzindo uma atmosfera de insegurança e até mesmo de medo, mas levando os que não sucumbem inteiramente ao seu império à busca da consciência quanto ao destino do Planeta e, logo, do Homem.

Outros usos possíveis para as técnicas atuais

Os sistemas técnicos de que se valem os atuais atores hegemônicos estão sendo utilizados para reduzir o escopo da vida humana sobre o planeta. No entanto, jamais houve na história sistemas tão propícios a facilitar a vida e a proporcionar a felicidade dos homens. A materialidade que o mundo da globalização está recriando permite um uso radicalmente diferente daquele que era o da base material da industrialização e do imperialismo.

A técnica das máquinas exigia investimentos maciços, seguindo-se a massividade e a concentração dos capitais e do próprio sistema técnico. Daí a inflexibilidade física e moral das operações, levando a um uso limitado, direcionado, da inteligência e da criatividade. Já o computador, símbolo das técnicas da informação, reclama capitais fixos relativamente pequenos, enquanto seu uso é mais exigente de inteligência. O investimento necessário pode ser fragmentado e torna-se possível sua adaptação aos mais diversos meios. Pode-se até falar da emergência de um artesanato de novo tipo, servido por velozes instrumentos de produção e de distribuição.

Dir-se-á, então, que o computador reduz – tendencialmente - o efeito da pretensa lei segundo a qual a inovação técnica conduz paralelamente a uma concentração econômica. Os novos instrumentos, pela sua própria natureza, abrem possibilidades para sua disseminação no corpo social, superando as clivagens sócio-eonômicas preexistentes.

Sob condições políticas favoráveis, a materialidade simbolizada pelo computador é capaz não só de assegurar a liberação da inventividade como torná-la efetiva. A desnecessidade, nas sociedades complexas e sócio-economicamente desiguais, de adotar universalmente computadores de última geração afastará, também, o risco de que distorções e desequilíbrios sejam agravados. E a idéia de distância cultural, subjacente à teoria e à prática do imperialismo, atinge, também, seu limite. As técnicas contemporâneas são mais fáceis de inventar, imitar ou reproduzir que os modos de fazer que as precederam.

As famílias de técnicas emergentes com o fim do século XX - combinando informática e eletrônica, sobretudo - oferecem a possibilidade de superação do imperativo da tecnologia hegemônica e paralelamente admitem a proliferação de novos arranjos, com a retomada da criatividade. Isso, aliás, já está se dando nas áreas da sociedade em que a divisão do trabalho se produz de baixo para cima. Aqui, a produção do novo e o uso e a difusão do novo deixam de ser monopolizados por um capital cada vez mais concentrado para pertencer ao domínio do maior número, possibilitando afinal a emergência de um verdadeiro mundo da inteligência. Desse modo, a técnica pode voltar a ser o resultado do encontro do engenho humano com um pedaço determinado da natureza - cada vez mais modificada -, permitindo que essa relação seja fundada nas virtualidades do entorno geográfico e social, de modo a assegurar a restauração do homem em sua essência.

Geografia e aceleração da história

A própria geografia parece contribuir para que a história se acelere. Na cidade - sobretudo na grande cidade -, os efeitos de vizinhança parecem impor uma possibilidade maior de identificação das situações, graças, também, à melhoria da informação disponível e ao aprofundamento das possibilidades de comunicação. Dessa maneira, torna-se possível a identificação, na vida material como na ordem intelectual, do desamparo a que as populações são relegadas, levando, paralelamente, a um maior reconhecimento da condição de escassez e a novas possibilidades de ampliação da consciência.

A partir desses efeitos de vizinhança, o indivíduo refortificado pode, num segundo momento, ultrapassar sua busca pelo consumo e entregar-se à busca da cidadania. A primeira supõe uma visão limitada e unidirecionada, enquanto a segunda inclui a elaboração de visões abrangentes e sistêmicas. No primeiro caso, o que é perseguido é a reconstrução das condições materiais e jurídicas que permitem fortalecer o bem-estar individual (ou familiar) sem, todavia, mostrar preocupação com o fortalecimento da individualidade, enquanto a busca da cidadania apontará para a reforma das práticas e das instituições políticas.

Frente a essa nova realidade, as aglomerações populacionais serão valorizadas como o lugar da densidade humana e, por isso, o lugar de uma coabitação dinâmica. Será também aí, visto pela mesma ótica, que se observarão a renascença e o peso da cultura popular. Por outro lado, a precariedade e a pobreza, isto é, a impossibilidade, pela carência de recursos, de participar plenamente das ofertas materiais da modernidade, poderão, igualmente, inspirar soluções que conduzam ao desejado e hoje possível renascimento da técnica, isto é, o uso consciente e imaginativo, em cada lugar, de todo tipo de oferta tecnológica e de toda modalidade de trabalho. Para isso contribuirá o fato histórico concreto que é, ao contrário do período histórico anterior, o grau de “docilidade” das técnicas contemporâneas, que se apresentam mais propícias à liberação do esforço, ao exercício da inventividade e à floração e multiplicação das demandas sociais e individuais.

Se a realização da história, a partir dos vetores “de cima”, é ainda dominante, a realização de uma outra história a partir dos vetores “de baixo” é tomada possível. E para isso contribuirão, em todos os países, a mistura de povos, raças, culturas, religiões, gostos etc. A aglomeração das pessoas em espaços reduzidos, com o fenômeno de urbanização concentrada, típico do último quartel do século XX, e as próprias mutações nas relações de trabalho, junto ao desemprego crescente e à depressão dos salários, mostram aspectos que poderão se mostrar positivos em futuro próximo, quando as metamorfoses do trabalho informal serão vividas também como expansão do trabalho livre, assegurando a seus portadores novas possibilidades de interpretação do mundo, do lugar e da respectiva posição de cada um, no mundo e no lugar.

As condições atuais permitem igualmente antever uma reconversão da mídia sob a pressão das situações locais (produção, consumo, cultura). A mídia trabalha com o que ela própria transforma em objeto de mercado, isto é, as pessoas. Como em nenhum lugar as comunidades são formadas por pessoas homogêneas, a mídia deve levar isso em conta. Nesse caso, deixará de representar o senso comum imposto pelo pensamento único. Desde que os processos econômicos, sociais e políticos produzidos de baixo para cima possam desenvolver-se eficazmente, uma informação veraz poderá dar-se dentro da maioria da população e ao serviço de uma comunicação imaginosa e emocionada, atribuindo-se, assim, um papel diametralmente oposto ao que lhe é hoje conferido no sistema da mídia.

Um novo mundo possível

A partir dessas metamorfoses, pode-se pensar na produção local de um entendimento progressivo do mundo e do lugar, com a produção indígena de imagens, discursos, filosofias,junto à elaboração de um novo ethos e de novas ideologias e novas crenças políticas, amparadas na ressurreição da idéia e da prática da solidariedade.

O mundo de hoje também autoriza uma outra percepção da história por meio da contemplação da universalidade empírica constituída com a emergência das novas técnicas planetarizadas e as possibilidades abertas a seu uso. A dialética entre essa universalidade empírica e as particularidades encorajará a superação das práxis invertidas, até agora comandadas pela ideologia dominante, e a possibilidade de ultrapassar o reino da necessidade, abrindo lugar para a utopia e para a esperança. Nas condições históricas do presente, essa nova maneira de enxergar a globalização permitirá distinguir, na totalidade, aquilo que já é dado e existe como um fato consumado, e aquilo que é possível, mas ainda não realizado, vistos um e outro de forma unitária. Lembremo-nos da lição de A. Schmidt (The concept of nature in Marx, 1971) quando dizia que “a realidade é, além disso, tudo aquilo em que ainda não nos tornamos, ou seja, tudo aquilo que a nós mesmos nos projetamos como seres humanos, por intermédio dos mitos, das escolhas, das decisões e das lutas”.

A crise por que passa hoje o sistema, em diferentes países e continentes, põe à mostra não apenas a perversidade, mas também a fraqueza da respectiva construção. Isso, conforme vimos, já está levando ao descrédito dos discursos dominantes, mesmo que outro discurso, de crítica e de proposição, ainda não haja sido elaborado de modo sistêmico.

O processo de tomada de consciência não é homogêneo, nem segundo os lugares, nem segundo as classes sociais ou situações profissionais, nem quanto aos indivíduos. A velocidade com que cada pessoa se apropria da verdade contida na história é diferente, tanto quanto a profundidade e coerência dessa apropriação. A descoberta individual é,já, um considerável passo à frente, ainda que possa parecer ao seu portador um caminho penoso, à medida das resistências circundantes a esse novo modo de pensar. O passo seguinte é a obtenção de uma visão sistêmica, isto é, a possibilidade de enxergar as situações e as causas atuantes como conjuntos e de localizá-los como um todo, mostrando sua interdependência. A partir daí, a discussão silenciosa consigo mesmo e o debate mais ou menos público com os demais ganham uma nova clareza e densidade, permitindo enxergar as relações de causa e efeito como uma corrente Contínua, em que cada situação se inclui numa rede dinâmica, estruturada, à escala do mundo e à escala dos lugares.

É a partir dessa visão sistêmica que se encontram, interpenetram e completam as noções de mundo e de lugar, permitindo entender como cada lugar, mas também cada coisa, cada pessoa, cada relação dependem do mundo.

Tais raciocínios autorizam uma visão crítica da história na qual vivemos, o que inclui uma apreciação filosófica da nossa própria situação frente à comunidade, à nação, ao planeta, juntamente com uma nova apreciação de nosso próprio papel como pessoa. É desse modo que, até mesmo a partir da noção do que é ser um consumidor, poderemos alcançar a idéia de homem integral e de cidadão. Essa revalorização radical do indivíduo contribuirá para a renovação qualitativa da espécie humana, servindo de alicerce a uma nova civilização.

A reconstrução vertical do mundo, tal como a atual globalização perversa está realizando, pretende impor a todos os países normas comuns de existência e, se possível, ao mesmo tempo e rapidamente. Mas isto não é definitivo. A evolução que estamos entrevendo terá sua aceleração em momentos diferentes e em países diferentes, e será permitida pelo amadurecimento da crise.

Esse mundo novo anunciado não será uma construção de cima para baixo, como a que estamos hoje assistindo e deplorando, mas uma edificação cuja trajetória vai se dar de baixo para cima.

As condições acima enumeradas deverão permitir a implantação de um novo modelo econômico, social e político que, a partir de uma nova distribuição dos bens e serviços, conduza à realização de uma vida coletiva solidária e, passando da escala do lugar à escala do planeta, assegure uma reforma do mundo, por intermédio de outra maneira de realizar a globalização.

A história apenas começa

Ao contrário do que tanto se disse, a história não acabou; ela apenas começa. Antes o que havia era uma história de lugares, regiões, países. As histórias podiam ser, no máximo, continentais, em função dos impérios que se estabeleceram a uma escala mais ampla. O que até então se chamava de história universal era a visão pretensiosa de um país ou continente sobre os outros, considerados bárbaros ou irrelevantes. Chegava-se a dizer de tal ou tal povo que ele era sem história...

A humanidade como um bloco revolucionário

O ecúmeno era formado de frações separadas ou escassamente relacionadas do planeta. Somente agora a humanidade pode identificar-se como um todo e reconhecer sua unidade, quando faz sua entrada na cena histórica como um bloco. É uma entrada revolucionária, graças à interdependência das economias, dos governos, dos lugares. O movimento do mundo revela uma só pulsação, ainda que as condições sejam diversas segundo continentes, países, lugares, valorizados pela sua forma de participação na produção dessa nova história.

Vivemos em um mundo complexo, marcado na ordem material pela multiplicação incessante do número de objetos e na ordem imaterial pela infinidade de relações que aos objetos nos unem. Nos últimos cinqüenta anos criaram-se mais coisas do que nos cinqüenta mil precedentes. Nosso mundo é complexo e confuso ao mesmo tempo, graças à força com a qual a ideologia penetra objetos e ações. Por isso mesmo, a era da globalização, mais do que qualquer outra antes dela, é exigente de uma interpretação sistêmica cuidadosa, de modo a permitir que cada coisa, natural ou artificial, seja redefinida em relação com o todo planetário. Essa totalidade-mundo se manifesta pela unidade das técnicas e das ações.

A grande sorte dos que desejam pensar a nossa época é a existência de uma técnica globalizada, direta ou indiretamente presente em todos os lugares, e de uma política planetariamente exercida, que une e norteia os objetos técnicos. Juntas, elas autorizam uma leitura, ao mesmo tempo geral e específica, filosófica e prática, de cada ponto da Terra.

Nesse emaranhado de técnicas dentro do qual estamos vivendo, o homem pouco a pouco descobre suas novas forças. Já que o meio ambiente é cada vez menos natural, o uso do entorno imediato pode ser menos aleatório. As coisas valem pela sua constituição, isto é, pelo que podem oferecer. Os gestos valem pela adequação às coisas a que se dirigem. Ampliam-se e diversificam-se as escolhas, desde que se possam combinar adequadamente técnica e política. Aumentam a previsibilidade e a eficácia das ações.

Um dado importante de nossa época é a coincidência entre a produção dessa história universal e a relativa liberação do homem em relação à natureza. A denominação de era da inteligência poderia ter fundamento neste fato concreto: os materiais hoje responsáveis pelas realizações preponderantes são cada vez mais objetos materiais manufaturados e não mais matérias-primas naturais. Pensamos ousadamente as soluções mais fantasiosas e em seguida buscamos os instrumentos adequados à sua realização. Na era da ecologia triunfante, é o homem quem fabrica a natureza, ou lhe atribui valor e sentido, por meio de suas ações já realizadas, em curso ou meramente imaginadas. Por isso, tudo o que existe constitui uma perspectiva de valor. Todos os lugares fazem parte da história. As pretensões e a cobiça povoam e valorizam territórios desertos.

A nova consciência de ser mundo

Graças aos progressos fulminantes da informação, o mundo fica mais perto de cada um, não importa onde esteja. O outro, isto é, o resto da humanidade, parece estar próximo. Criam-se, para todos, a certeza e, logo depois, a consciência de ser mundo e de estar no mundo, mesmo se ainda não o alcançamos em plenitude material ou intelectual. O próprio mundo se instala nos lugares, sobretudo as grandes cidades, pela presença maciça de uma humanidade misturada, vinda de todos os quadrantes e trazendo consigo interpretações variadas e múltiplas, que ao mesmo tempo se chocam e colaboram na produção renovada do entendimento e da crítica da existência. Assim, o cotidiano de cada um se enriquece, pela experiência própria e pela do vizinho, tanto pelas realizações atuais como pelas perspectivas de futuro. As dialéticas da vida nos lugares, agora mais enriquecidas, são paralelamente o caldo de cultura necessário à proposição e ao exercício de uma nova política.

Funda-se, de fato, um novo mundo. Para sermos ainda mais precisos, o que, afinal, se cria é o mundo como realidade histórica unitária, ainda que ele seja extremamente diversificado. Ele é datado com uma data substantivamente única, graças aos traços comuns de sua constituição técnica e à existência de um único motor para as ações hegemônicas, representado pelo lucro à escala global. É isso, aliás, que, junto à informação generalizada, assegurará a cada lugar a comunhão universal com todos os outros.

Ousamos, desse modo, pensar que a história do homem sobre a Terra dispõe afinal das condições objetivas, materiais e intelectuais, para superar o endeusamento do dinheiro e dos objetos técnicos e enfrentar o começo de uma nova trajetória. Aqui, não se trata de estabelecer datas, nem de fixar momentos da folhinha, marcos num calendário. Como o relógio, a folhinha e o calendário são convencionais, repetitivos e historicamente vazios. O que conta mesmo é o tempo das possibilidades efetivamente criadas, o que, à sua época, cada geração encontra disponível, isso a que chamamos tempo empírico, cujas mudanças são marcadas pela irrupção de novos objetos, de novas ações e relações e de novas idéias.

A grande mutação contemporânea

Diante do que é o mundo atual, como disponibilidade e como possibilidade, acreditamos que as condições materiais já estão dadas para que se imponha a desejada grande mutação, mas seu destino vai depender de como disponibilidades e possibilidades serão aproveitadas pela política. Na sua forma material, unicamente corpórea, as técnicas talvez sejam irreversíveis, porque aderem ao território e ao cotidiano. De um ponto de vista existencial, elas podem obter um outro uso e uma outra significação. A globalização atual não é irreversível.

Agora que estamos descobrindo o sentido de nossa presença no planeta, pode-se dizer que uma história universal verdadeiramente humana está, finalmente, começando. A mesma materialidade, atualmente utilizada para construir um mundo confuso e perverso, pode vir a ser uma condição da construção de um mundo mais humano. Basta que se completem as duas grandes mutações ora em gestação: a mutação tecnológica e a mutação filosófica da espécie humana.

A grande mutação tecnológica é dada com a emergência das técnicas da informação, as quais - ao contrário das técnicas das máquinas - são constitucionalmente divisíveis, flexíveis e dóceis, adaptáveis a todos os meios e culturas, ainda que seu uso perverso atual seja subordinado aos interesses dos grandes capitais. Mas, quando sua utilização for democratizada, essas técnicas doces estarão ao serviço do homem.

Muito falamos hoje nos progressos e nas promessas da engenharia genética, que conduziriam a uma mutação do homem biológico, algo que ainda é do domínio da história da ciência e da técnica. Pouco, no entanto, se fala das condições, também hoje presentes, que podem assegurar uma mutação filosófica do homem, capaz de atribuir um novo sentido à existência de cada pessoa e, também, do planeta.( O Professor, Cientista, Geógrafo prêmio Nobel de Geografia, 12 titulos de Honoris causa de diversas faculdades no mundo, moreu como titular da cadeira de filosofia e ciências Humanas da USP) Homenagem do dia da Conciência Negra 20.11.2007).

In: SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. Rio de Janeiro. Record, 2000. pg.159-174

sexta-feira, 20 de julho de 2007

"Encontro de Ribeirão Preto, SP"




de 23 a 25 de novembro de 1979

"O negro sob a visão política do estadista da República dos Palmares no Brasil de hoje."

Estamos às vésperas de um novo Recenseamento no Brasil e a manifesta intenção da Fundação do IBGE em não caracterizar a cor dos brasileiros provocou - como era de esperar - por parte dos sociólogos patrícios, um veemente protesto como mais uma forma dis­farçada de racismo e escravagismo.
É de se indagar: por que essa ocultação da cor? Será pelo fato de sermos hoje uma Nação mestiça? Não são poucos os sociólogos que afirmam que mais de setenta por cento dos brasileiros é constituí­do por mestiços. Assim sendo, contrariamente ao que se afirmava há algumas décadas acerca do "branqueamento" do povo brasileiro, observa-se, atualmente, um "morenamento" do povo, o que vale dizer, um "escurecimento", ou seja, uma predominância dos caracteres "afri­canos na nossa gente".
Se há essa prevalência nas características do homem e da mu­lher brasileiros, não se nota, contudo, a valorização cultural de nos­sas raízes africanas. O que se verifica ainda no Brasil é um acen­tuado modo de ser alienígena, com fortes traços do elemento colo­nizador europeu e hoje, pelos diversos meios de comunicação e di­fusão artístico-cultural, dos hábitos e costumes americanos, fortemen­te descaracterizadores da identidade nacional.
Assim, se antes não conseguimos formar um pensamento repre­sentativo dos valores étnicos do negro, hoje, estamos muito mais amea­çados de não chegarmos a constituir os nossos pr6prios valores na sociedade brasileira, em face da avassaladora descaracterização da cultura nacional, onde a cultura brasileira, como um todo, vê-se ameaçada.
Diante dessa ameaça, o negro, o mestiço, o branco, enfim todos os que compõem o povo brasileiro poderão frustrar-se em não reali­zar o audacioso e ambicioso projeto de viabilizar a primeira ci­vilização tropical, onde o elemento negro, por suas próprias carac­terísticas étnicas, é o forjador desta civilização nos Trópicos.
Ao nos reunirmos nesta pujante e progressista cidade de Ribei­rão Preto, para estudar e debater os problemas do negro, inspira­mo-nos, como não poderia deixar de ser, na figura daquele que foi o exemplo máximo da LIBERTAÇÃO NACIONAL contra o elemen­to. colonizador e que por todos os títulos e o seu incontestável papel na História do Brasil foi o iniciador do nosso processo de indepen­dência e da participação do negro na vida política: Zumbi, o criador da República de Palmares.
Malgrado o dignificante exemplo de Zumbi, depois de Palmares, observamos tristemente que há um vazio na participação política do negro, a despeito de um ou outro elemento, isoladamente, que galgou posição de realce no cenário nacional, não como força representati­va da nossa etnia, mas, puramente, por méritos pessoais, tendo que transpor, é de se reconhecer, terríveis barreiras para fazer valer suas individualidades.
Razão pela qual, é preciso que se reafirme em um momento co­mo este que precisamos nos unir, defender nossos valores culturais, ressaltar o legado de nossa herança cultural, enfim, participar ativa­mente do processo sócio-político-cultural brasileiro, sob pena de ser­mos considerados omissos pelos nossos pósteros, ou pior ainda, de termos nos acovardado em fazer valer nossos valores étnicos.
Os historiadores brasileiros, em sua esmagadora maioria cons­tituída de brancos, sempre viu o elemento negro como extremamen­te .paciente, gentil, cordial, como um ser bondoso que está sempre esperando ~ nunca se definiu e nunca foi dito o que está a esperar - como um ser pronto a servir, no sentido de ser utilizado pelas classes dominantes, mas, infelizmente, nunca foi visto como um ele­mento cuja participação na força de trabalho foi e é decisiva para o engrandecimento da Nação brasileira. Somente o próprio negro pode acabar com essa imagem que antes de o engrandecer o diminui no contexto étnico brasileiro, transformando-se através da sua parti­cipação política nos destinos do Brasil.
É preciso um basta. Chega de esperar. Estamos esperando o quê? Que outros nos obriguem a participar politicamente? Acaso pre­cisaremos de lições? Não foi suficiente o exemplo viril de Zumbi?
Por acaso Zumbi está morto? Não. Não acreditamos. O ideal de Zumbi permanece vivo, é eterno, jamais morrerá. Zumbi não mor­reu. Só morrerá se os negros o matarem. Mas isto jamais acontecerá. Por esta razão estamos reunidos aqui e agora para reafirmar o seu ideal de luta, de independência, de liberdade, de amor à VIDA e de vivificá-Ia.
Como ponto básico de nossos estudos, peço seja transcrito nos Anais deste Encontro a "Carta de Uberaba", idealizada sob a inspi­ração do estadista Zumbi, e que deve ser o traço de união, o ideário de' todo o negro brasileiro.

Carta de Uberaba - CONGRESSO AFRO-BRASILEIRO


DOCUMENTO A QUE SE REFERE
O SR. ITAMAR FRANCO EM SEU DISCURSO.


I CONGRESSO AFRO-BRASILEIRO


Realizado em Uberaba, Minas Gerais, de 7 a 9 de setembro de 1979
Reunidos, em Uberaba, negros brasileiros e entidades representa­das em Congresso Nacional, resolvem editar a carta de posiciona­mento político:
1. Considerando que os descendentes de afro-brasileiros, atra­vés do tempo, aprenderam a tolerar e transformar pacificamente to­dos os atos de violência oriundos de outras etnias;
2. Considerando que ministrado e dirigido à coisa pública e os bens da Nação e os negócios exteriores culturais e sócio-econômi­cos pelas etnias europeizantes, em decorrência da colonização;
3. Considerando que o Brasil sendo um país de grande ex­tensão territorial e só a pequena minoria europeizante é que dela participa e desfruta em forma substancial dos frutos do solo e do subsolo, enquanto os descendentes de afros e indígenas não par­ticipam em igual teor;
4. Considerando que os negros foram capazes de constituir o Brasil pela sua capacidade interior, projetando para o exterior, em forma de trabalho, canalizar em energia os vários estágios de rique­zas financeiras e econômicas e que a minoria europeizante desfrutou e desfruta até hoje,
Resolve:
Os negros brasileiros, à Carta de Uberaba apresentam como so­lução à Nação as seguintes sugestões:
a) Participação efetiva na política em nível municipal, estadual e federal;
b) Iingresso e filiação nos partidos políticos que mais afinem com as necessidades ideológicas
(do negro);
c) Ocupação de todo espaço vazio que a Nação dispõe.
Ressalte-se a necessidade de integração no processo social dos trabalhadores rurais, dos camponeses, cuja legislação até hoje não foi compreendida (vide Estatuto do Trabalhador Rural, agora in­tegrado na CLT, bem como o cumprimento do Estatuto da Terra);
f) Integração nos órgãos de divulgação: imprensa, rádio, tele­visão· e editoras;
g) Dinamização de todo o acervo cultural passado e presente, em forma conjunta, a fim de canalizar todas as forças vitais de que dispõem: a música, o teatro, o cinema, pintura, escultura e manifes­tações de folclore de um modo geral;
h) Política habitacional: desenvolver e ampliar a mentalidade cooperativista, tanto em mutirões, quanto na forma de participação associativa;
i) Política de saúde: esporte, prevenção, higiene;
i) Política alimentícia, sendo cooperativista dos produtores e dos trabalhadores;
1) Eleições livres e diretas pelo voto secreto de Prefeito, Gover­nador e Presidente da República; de Vereador a Deputado Estadual, Federal e Senador. A supressão das eleições entendemos como for­ma de racismo e escravagismo.

terça-feira, 19 de junho de 2007

A Vida do Negro

A Vida do Negro

Só se pode compreender o negro a partir da sua posição no cosmos. Enquanto perdurar o logicismo e o racionalismo próprios dos europeus e dos norte-americanos (herdeiros no Novo Continente dos modos de pensamento, dos valores e dos conceitos prevalentes nos antigos colonizadores), não se compreenderá o negro.

A história, as ciências, a filosofia e todas as demais províncias do saber humano nos últimos dois mil anos no Ocidente "ignoram" as diversas formas de conhecimento e de cultura existentes na África, "esquecendo", pois era conveniente "esquecer", que uma das formas mais abstratas de raciocínio, a matemática, surgiu no Egito, numa época em que aquele país era muito mais negro do que branco, Seria desnecessário igualmente lembrar a origem dos diversos grupos étni­cos hoje considerados brancos e que tiveram sua origem negra. Por­tanto, a mestiçagem sempre foi um fato incontestável na formação do homem ocidental.

O negro, por sua natureza, é um ser social, gregário, como queria Aristóteles, diferentemente do homem em ocidental que surgiu com e após o Renascimento com fortes traços individualistas, em que o rompimento com o passado recente (a Idade Média) representou também a ruptura dos laços que o ligavam a Deus, Ora, o negro concebendo Deus como uma "vis", isto é, como força, energia, cons­truirá toda uma cosmogonia a partir da manifestação dessa força, presente em todos os seres e todas as formas existenciais, Assim, Deus, a fonte suprema, o início e a origem de tudo, é, também, o fim a que todas as coisas se destinam e se desintegrarão. Neste MOVIMENTO ENERGÉTICO, o negro, notadamente o negro afri­cano, irá valorizar a intuição como método de conhecimento, Cha­mem-na, a intuição, com o nome que se queira dar, mas é no sentido místico - tão bem captado por Bergson e por Chardin - que o negro construiu a sua metafísica, o seu modo de conhecer o ser.

A partir daí, poder-se-á entender a música, a dança, a organi­zação familiar e social, a estrutura econômico-político negro, enfim, compreendê-la como uma manifestação da energia divina, assim como os animais, os vegetais, os minerais, sabendo, contudo, que o homem é a forma de energia ou o ser que pode canalizar todas as energias ao seu criador. O "bem" ou o "mal", depende do uso que se faz dessa energia.

Assim sendo, sem nos aprofundarmos na questão, transpondo os traços da cultura para o Brasil e limitando-nos à realidade brasi­leira pode-se compreender (sem entrar na análise da brutal estrutura sócio-econômico-política que marginalizou o negro durante e após a escravidão) a cordialidade, a paciência, o saber esperar do negro, pois o tempo, ora o tempo, por que falar em tempo? - só existe em função de algum objetivo, e este fim, que pensaram haver des­truído ao dizimarem a República de Palmares, universalizou-se em todo o território brasileiro. O Brasil é hoje um "grande Palmares".

É este Brasil palmares, este Brasil mestiço, que os cientistas so­ciais oficiais teimam em dizer que é uma DEMOCRACIA RACIAL - comentários à parte -, consciente da sua esmagadora maioria jamais deu atenção aos arreganhos dos que pensam ou se supõem ser a maioria étnica deste País. O problema não é saber se o maior contingente humano é formado por brancos, negros, índios (brutali­zados e dizimados), mestiços e outros que a nós se juntaram para formar, construir, para viabilizar, não somente a primeira civilização nos Trópicos, mas, sim a primeira civilização mestiça nos Trópicos. O que interessa ao homem de cor, como alguns pedantes insistem em tratar mais de setenta por cento da população brasileira, é oferecer a sua contribuição ao País, seja nos projetos contingenciais, mas, sobretudo, que se instaure no Brasil uma ordem econômica, social e política que seja a superação do que existe, tanto das diversas for­mas de capitalismo como dos variados socialismos para uma estru­tura sócio-político-econômica em que o homem possa realizar-se plenamente, sem perder as raízes históricas.


Um pronunciamento como o do eminente, humanista, culto e lúcido Senador Itamar Franco, político que honra e ilustra a notável galeria de homens públicos de Minas e do Brasil apoiado por todas as lideranças do Senado da República, não só dignifica o homem político brasileiro, mas é o ponto de partida para o Novo Brasil.

Waldimiro de Souza Líder de Comunidade Negra.

Igualdade e Participação do Negro:

Igualdade e Participação do Negro:
O Clamor do Senador Itamar Franco

O Congresso Nacional, por sua natureza e tradição, é o cenário propício para a defesa dos Direitos Humanos. Não se trata de coincidência, pois, verificar que os grandes vultos de nossa nacionalidade que se posicionaram contra a discriminação racial tiveram e têm assento nas Casas do Poder Legislativo.

Prova inconteste é o pronunciamento do Senador Itamar Franco, que mereceu o caloroso apoio das lideranças no Senado Federal, ao registrar nos Anais da Câmara Alta o “Dia Internacional para Elimi­nação da Discriminação Racial”, instituído pela Organização das Nações Unidas, a fim de que os povos se lembrem do brutal mas­sacre de Sharpeville e deem sua participação na luta contra o apartheid.

Poderiam os desavisados indagar: Não é o Brasil uma “demo­cracia multirracial”? Não há entre nós a Lei Afonso Arinos, que proíbe qualquer forma ou manifestação de discriminação racial? A nossa população não é hoje constituída de mais de setenta por cento de mestiços, segundo se estima? Como falar em racismo no Brasil? São indagações do homem comum, na maioria das vezes incons­cientes, que repetem estereótipos daqueles que se ocultamt no anoni­mato e que praticam aquela odiosa e cruel forma de racismo ao dizer que “o negro conhece o seu lugar” e coisas que-tais. Quem ousará di­zer que jamais ouviu ou presenciou formas veladas ou dissimuladas de racismo?

A pior manifestação de racismo, contudo, não é a que se pratica no acesso do negro ou do mestiço na escala sócio-econômico-política, opondo-se-lhe obstáculos de toda ordem. A mais dolorosa, a mais tristemente sofrida situação do negro e elo mestiço no Brasil, consiste em não poder realizar “uma dupla aspiração”: “a aspiração à igual­dade e a aspiração à participação; trata-se de dois aspectos da dignidade do homem e da sua liberdade”, como asseverou Paulo VI na Carta Apostólica ao Cardeal Maurice Roy, por ocasião do 80° aniversário da Encíclica Rerum Novarum, no dia 14 de maio de 1971.

Obviamente que Paulo VI falava de um modo geral, ao tratar das aspirações fundamentais e correntes de ideias num mundo em que o progresso científico a altera a paisagem do homem, principalmente quando se desenvolve "a sua informação e a sua educação".

Identificamos aqui a posição do homem brasileiro, o que vale dizer, daquele contingente de setenta por cento da nossa população constituído pelos negros e seus descendentes e que são, também, na sua grande maioria, os moradores das favelas, dos mocambos, das palafitas e que não participam das oportunidades de trabalho, de consumo, de bem-estar e tampouco se beneficiam das conquistas culturais e tecnológicas. Daí a oportuna advertência do ilustre Se­nador Itamar Franco: “A sociedade brasileira só será, realmente, aberta, justa e equânime quando agregarmos todos os seus segmentos - como os negros - ao desenvolvimento da Nação”.

Eis o que deseja, o a que aspira, o que quer o Brasil mestiço: “igualdade” e “participação”. Qualquer sociedade só será, de fato, “aberta, justa e equânime”, isto é, democrática, quando houver igual­dade e participação. O repúdio a quaisquer ideologias impostas, vio­lentadoras da dignidade do homem e da sua liberdade, é o funda­mento da "Carta de Uberaba" e da Proclamação de Ribeirão Preto: “O negro sob a visão política do estadista da República dos Palma­res no Brasil de hoje”

Liberto e descompromissado de e com quaisquer sistemas eco­nômicos e políticos, o negro no Brasil, como muito bem observou a antropóloga negra americana, Ângela Gillian, diferentemente do negro americano que luta por um acesso ao sistema lá vigente, aqui, ao contrário, segundo a antropóloga, “parte da crítica ao capitalismo, e da relação entre o capitalismo internacional e a situação em que ele vive, sem perder a perspectiva histórica”.

Muito mais do que uma crítica a determinado sistema econô­mico, mas, sim, procurando através de forma desinteressada pro­mover no corpo social as convicções culturais e religiosas de um povo nas suas relações com a natureza, acerca da função do homem no mundo, da origem e do fim do homem, a partir daquele “movi­mento energético”, de que fala Waldimiro de Souza - inspirador e animador de vários movimentos afro-brasileiros , e, consequente­mente, da própria sociedade.

Este o Brasil novo, o Brasil mestiço que o jovem Senador Itamar Franco, que honra e enobrece a admirável estirpe dos homens pú­blico, mineiro, anunciou Nação brasileira.

Miguel Setembrino Emery de Carvalho
Professor de História .

Carta do Deputado Carlos Santos

Carta do Deputado Carlos Santos
Brasília, 16 de abril de 1980

Eminente Senador Itamar Franco, Saúde e Paz!
No preciso instante em que Vossa Excelncia, engalanando a nossa mais alta tribuna política, falava para o Brasil sobre o "Dia Internacional para Eliminação da Discriminação Racial", ali mesmo, o Senado da República, soberba e oficialmente, incorporava-se aos entreveros santificantes da reação coletiva e cívica contra a bruta­lidade doentia do racismo.

Como se reivindicado houvesse para mim o privilégio sublime de resguardar as excelencias da negritude - pelo que nela se recama a dignidade suprema da Pessoa Humana, em termos de florões do espírito, "órgão da vida eterna", como diria Rui - tenho saturado os Anais da Câmara Federal com o fervor da fala sem ódio e sem prevenção, sempre, porém, ungida de orgulho do sangue, da origem, do berço sobretudo, do papel histórico do Negro no bojo da nacio­nalidade nascente.

Se nos arreganhos racistóides, porém, que aqui e ali vão repon­tando nos escaninhos da Pátria, é a voz negra isoladamente que se projeta vanguardeando as reações salutares - o que em parte se admite e compreende -, nos momentos de memoração simplesmente cívica de exaltação pondunorosa dos fatos e dos homens que pau­taram no tempo os momentos de grandeza aEro-brasileira; a home­nagem é bem que não partisse de nós, pois numa esplendente mos­tragem do embasamento da nossa decantada "sociedade multirracial" o Negro aí deveria ser, tão-só, no calor das reverencias, motivo cívico e não raíz geradora; tão-somente alvo e não mola impulsora; nobre efeito, apenas, e não causa ufanosa.

É como fez o meu Rio Grande do Sul, nos idos de 1969, quando ao ensejo do Bicentenário da Colonização e Imigração, envolveu toda a estirpe ebanizada nos florões da gratidão do Estado e nas galas das homenagens oficiais.

Não foi diferente a postura altiva e patriótica de Vossa Exce­lencia, em fazendo de seu primoroso discurso o brado mesmo do próprio Senado Federal, solidário com a luta universal contra a abjeção do racismo.

E local outro mais indicado para tão vibrante manifesto de sadia hrasilidade, de patriotismo sem dobra nem jaça, é certo que não se ofereceria.

Casa maior do Povo, centro aglutinador das mais castiças vir­tudes de brasileira gente, o Senado Federal, na virilidade da fala de Vossa Excelcncia, se fez crisol da mais soberba conceiruação da unidacle espiritual do nosso povo. sem o que a idéia de Pátria re­dundaria em mera ficção.

Evocando as "nossas raízes africanas, que modelaram uma nação mestiça e uma civilização tropical", Vossa Excelência põe em relevo o ahsurdo, o ridículo, o incoerente, o ilógico, o esdrúxulo das cogi­tações dc raça no seio de um Povo como o brasileiro, em cuja nacio­nalidade está implícita a preponderância do "papel do negro e do mestiço na nossa formação étnica, na sua força de trabalho em nossa economia e as suas notáveis contribuições fundamentais no campo cultural, artístico, Iingüístico e nos costumes. Enfim, o seu real posic!onamento no contexto social brasileiro".

E então, Vale a magistral oração de Vossa Excelência por uma solene advertência aos brutos da raça pura", aos bobos da corte sem garbo de Gobineau, que por aí afora andam perdidos no pró­prio desajuste mental para a ambiência democrática e, pior ainda, inépcia moral para o resguardo da nossa realidade esplendente como Pátria livre e soberana; pois fazem da coloração epidérmica - con­dição simplesmente acidental - fator de discriminação social e, desta, a mais repugnante razão de quebra de unidade espiritual, que é a esslência mesma do ideário de Pátria.

Não se fustiga a estima, nem a benemerência, nem os brios dos paladinos da jornada gloriosa da Abolição, quando se afirma ter ficado abcrto no tempo o ciclo histórico de 13 de Maio .

A quebra dos guilhões de ferro ou o destroço das senzalas imun­das; a extinção oficial do Iabéu escravagista ou a decretação formal da liberdade física; a proclamação ruidosa da Abolição ou a queima inócua do arquivo escravocrata; a transformação do "escravo-coisa" em gente ou da gente em cidadão; nada disso exauriu os ideais de grandeza moral da geração preordenada que projetou no painel da História o 13 de Maio de 88.

O"Todos são iguais perante a lei" que reluz no texto da nossa Carta Magna, não evitou. nem dispensou a Lei Afonso Arinos, de tão enervante ineficácia.
o próprio Autor, o eminente jurista, Afonso Arinos, confessa-se desapontado e declara aos jornais que nunca houve punição escudada na Lei em tela, embora registre vinte e sete anos de vigencia, infeliz­mente sem a mínima aplicação.
Diz mais: que ao contrário, o problema se agravou na Última década, em função do esplendente surto industrial no País, real­çando, textualmente, que "temos uma classe de ricos mais numerosa, quase todos com sangue negro nas veias, pelo que eu mesmo cons­tatei. Mais são racistas, apesar de mestiços, ou então, por causa disso mesmo" .

A Carta de Uberaba que os negros ali reunidos dirigiram ao Governo e à Nação, emoldura o posicionamento político que devem tomar, com os olhos e o pensamento voltados para a sua plena, imperiosa e patriótica integração nacional.

E por reunir e expressar o importante documento um punhado ele "aspirações e sentimentos elo Brasil mestiço" houve por bem Vossa Exclência honrar seus autores, ao transformá-lo em parte integrante de sua memorável oração.
Tem, ele fato, a política, papel primordial no escopo superior da ascensão social do negro brasileiro.

Não, porém, como Minoria, integrante que é da comunidade brasileira, sem diferença ele língua, de religião, de costumes ou de qualquer outro elemento que o tornasse estranho à comunhão na­cional.

Ele tem de ser convocado, aproveitado e dignificado no setor político como cidadão, na mais rigorosa igualdade de condições, sob a égide do direito da absoluta igualdade que a Lei lhe outorga, ­artífice que foi, pelo sangue, pela ternura, pelo sofrimento e pela re­núncia, da obra gloriosa da construção da pátria nacionalidade.

Por tudo quanto aqui em forma de letra, o coração diton. Com a chancela das emoções mais vivas e naturais, rogo se digne Vossa Excelência receber e aceitar as minhas congratulações pelo brilho da forma, excelência do conteúdo e moldura de requintada brasili­daele da magnífica oração com que registrou, nos Anais do Senado Federal, o transcurso do "Dia Internacional para Eliminação da Dis­criminação Racial".

Com elevada estima e não menor admiração, creia-me, fraternalmente - Deputado Carlos Santos.


Dados Básicos:
Data de Nascimento:
09/12/1904 (Falecido em 09/05/1989)
Local de Nascimento:
Rio Grande do Sul, RS
Legislaturas:
1975-1979 e 1979-1983.
Mandatos (na Câmara dos Deputados):
Deputado Federal, 1975-1979, RS, MDB. Dt. Posse: 01/02/1975;
Deputado Federal, 1979-1983, RS, MDB. Posse: 01/02/1979.
Filiações Partidárias:
ARENA; MDB
Condecorações:
Comenda Pro Eclesia et Pontifice - Papa João XXIII, 1960. Recebeu igual Comenda do Papa Paulo VI, 1967.
Estudos e Cursos Diversos:
Estudos iniciais no Liceu Salesiano Leão XIII e nos colégios estaduais Nossa Senhora do Rosário e Lemos Júnior; Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais - Faculdade de Direito de Pelotas, da Universidade do Rio Grande do Sul, 1950.
Obras Publicadas:
Predestinação do Direito, Tip. Leão XIII, 1950.
Atividades Parlamentares:
CÂMARA DOS DEPUTADOS: COMISSÕES PERMANENTES: Relações Exteriores: Membro efetivo, 1975.CPI: Problema do Menor: Membro efetivo, 1975, e Presidente, 1975.

Continuação do Discurso do então Senador Itamar Franco

O Sr. Mauro Benevides - Permite V. Ex. um aparte?
O SR. ITAMAR FRANCO - Ouço V. Ex:
O Sr. Mauro Benevides - Senador Itamar Franco, sabe V.
Ex: que, nesta Casa, sou um dos representantes do Estado que em nosso País foi um dos primeiros a redimir os escravos, pondo fim àquele regime de opressão que predominava na século passado. E, no instante em que V. Ex?- se reporta ao problema da discrimina­ção racial, desejo ressaltar que o nosso partido, o Partido do Movi­mento Democrático Brasileiro, fez questão de inserir em seu pro­grama um capítulo referente aos negros, condenando todas as for­mas de discriminação e defendendo a participação dos negros no processo político brasileiro. Muito grato a V. Ex:
.o SR. IT AMAR FRANCO - Sou eu quem agradece, Senador Mauro Benevides, não só o registro histórico que V. Ex: referiu, em relação ao seu Estado, roas sobretudo também lembrando o aspecto partidário, em que o nosso partido se apresenta também, com firmeza, nessa luta contra a discriminação racial.
O Sr. Aloysio Chaves - Permite V. Ex: um aparte?
O SR. ITAMAR FRANCO - Com muito prazer ouço V. Ex: O Sr. Aloysio Chaves - Desejo, nobre Senador Itamar Franco,
adicionar ao discurso de V. Ex: algumas observações que nele es­tão implicitamente contidas. V. Ex:- sabe que dentro do processo histórico, tradicional, no Brasil, não se fez essa discriminação racial. Aliás, um dos traços mais notáveis da civilização portuguesa é o seu caráter multirracial. Tanto assim, que agora quando a Europa enfrentou esse grave processo de descolonização, Portugal foi pra­ticamente o último país a ser afastado do Continente Africano. En­tretanto, por influências exógenas esse sentimento poderia ser esti­mulado, cultivado no Brasil e, coerente com a nossa tradição his­tórica e cultural, o eminente homem público, o grande jurisconsulto e ex-parlamentar Afonso Arinos de MeIo Franco é autor de uma lei que recebeu o seu nome, proibindo exatamente qualquer tipo de discriminação racial, em qualquer atividade administrativa, cultu­ral, social ou política do País. Esta lei está em pleno vigor, pela qual tanto devemos nos bater e, sem dúvida alguma, será o instru­mento eficaz para evitar que brote de qualquer maneira, em qual­quer camada ou em quafquer segmento da população, um senti­mento que venha contrariar essa tradição histórico-cultural brasi­leira. Também o nosso Partido, o Partido Democrata Social, inseriu no seu programa, com destaque, como ponto fundamental, o com­bate a toda espécie de discriminação, inclusive a racial, da mesma maneira como o fez o nobre Partido de V. Ex: conforme acaba de registrar o nobre Senador Mauro Benevides. Congratulando-me, portanto, com o pronunciamento de V. Ex: considero-o necessário e conveniente para evitar que qualquer resquício de preconceito racial possa, sob forma, mesmo dissimulada, surgir neste País, con­trariando a nossa tradição histórico-cultural.
o SR. ITAMAR FRANCO - V. Ex: há de ter a oportunidade de verificar, no decurso do meu discurso, que focalizo bem o aspecto brasileiro, evidentemente destacando a sua singularidade neste pro­cesso de discriminação racial. Mas também lembramos que essas maiorias estão um pouco abandonadas em relação a determinados aspectos do nosso Brasil. Muito obrigado a V. Ex: pela sua. in­tervenção. Continuo, SI. Presidente:
Agiganta-se, essa fecunda experiência histórica, no cenário in­ternacional, como paradigma de nova era nas relações entre raças e povos e, ao mesmo tempo, encerra o ciclo de um processo social abominável, de triste memória, indefeso à luz da civilização, porque odiosa, sob todos os aspectos, é a discriminação racial.
Identificam-se nesta vitória, democracia, liberdade, respeito aos Direitos Humanos, confraternização do elemento nativo.
Mugabe, um desses autênticos líderes populares, que emerge do
"status" político, diz:
"Estamos começando um capítulo inteiramente novo em nossa História. A guerra acaba de terminar. Estamos em paz. Não precisamos de lei marcial, nem de prisões polí­ticas desnecessárias. Pessoalmente, as ditaduras me causam repugnância. O racismo, é claro, terá de ser abolido ime­diatamente. Queremos que todos possam ter plena partici­pação e o direito democrático de tomar suas próprias qe­cisões. Quanto ao "apartheid" da África do Sul, podemos e devemos denunciá-lo nas Nações Unidas e junto aos paí­ses não-alinhados."
Para nós, brasileiros, dadas as nossa raízes africanas, que mo­delaram uma nação mestiça e uma "civilização tropical" - o que ocorre em Angola, Zimbabwe e Moçambique, nos interessa de per­to e nos úbriga a refletir mais profundamente no preponderante papel do negro e do mestiço na nossa formação étnica, na sua for­ça de trabalho em nossa economia e as suas notáveis e fundamen­tais contribuições no campo cultural, artístico, lingüística e nos costumes. Enfim, o seu real posicionamento no contexto social bra­sileiro.
E mais ainda: faz-nos questionar com maior seriedade e de­terminação a problemática do negro em nossa sociedade, suas con­dições de vidas, seus anseios e necessidades e, acima de tudo, a conscientização de seu status atual.
Tal conscientização, em verdade, já pode ser observada. Vá­rios movimentos, em todo o Brasil, estão originando-se agora co­mo força de aglutinação e participação do negro na vida nacional, objetivando a melhoria e a qualidade de sua existência.
O Sr. Lomanto ]únior - Permite V. Ex: um aparte?
O SR. ITAMAR FRANCO - Com muito prazer, nobre Sena­dor.
O Sr. Lomanto ]únior - Nobre Senador Itamar Franco, eu me congratulo com V. E: pelo registro oportuno que faz da data comemorativa do Dia Mundial Contra a Discriminação Racial. Par­ticipei na semana passada, no Ministério das Relações Exteriores, de uma magnífica reunião presidida pelo Chanceler brasiileiro, Mi­nistro Saraiva Guerreiro, onde tivemos a oportunidade de ouvir uma brilhante palestra, magistral palestra mesmo, proferida pelo Ministro Eduardo PorteIla, da Educação. O registro que V. Ex: faz nesta tarde, repito, é um dos mais oportunos e eu não poderia dei­xar de me congratular com V. Ex:, como representante de um Es­tado onde predominou no passado, e ainda tem marcas profundas no presente, a raça negra, a qual muito ajudou o 'desenvolvimento de meu Estado e que é, sem dúvida alguma, parte integrante da sua cultura e enriquece o seu folclore. Portanto, gostaria de trans­mitir a V. Ex~ os meus cumprimentos e dizer que me solidarizo com V. Ex:, quando registra no Senado da República as justas co­memorações que o mundo inteiro faz pelo Dia Mundial contra a Discriminação Racial, o que ainda é, infelizmente, mácula - má­cula terrível - que de qualquer maneira atinge a fundo a Huma­nidade. Precisamos todos unir os nossos esforços para que possa­mos escoimar, de uma vez por todas, a discriminação racial que se constitui numa vergonha para o mundo.
O SR. ITAMAR FRANCO - Muito obrigado, Senador Lo­manto Júnior. É verdade: quando se fala em discriminação racial a voz da Bahia não poderia ficar ausente.
O Sr. Gabriel Hermes - V. Ex: permite um aparte?
O SR. IT AMAR FRANCO - Com muito prazer, Senador Gabriel Hermes.
O Sr. Gabriel Hermes - Nobre Senador, a oportunidade do discurso de V. E xª", realmente, é a melhor possível, principalmentequando se fala em discriminação racial dentro de um País como o nosso, pois temos de nos unir para destruir qualquer "pontinho" que apareça nesse sentido. Não é somente a raça negra: sabemos o que aconteceu há bem poucos anos com a raça amarela, com os indianos dentro de sua própria pátria, com Mahatman Gandhi ­a maior alma talvez deste século, o maior libertador dos últimos tempos - o que ele fez para libertar aqueles milhões de indianos e também homens e mulheres do Paquistão, sem derramar uma go­ta de sangue. Verificamos como eram tratados, talvez pior do que os próprios negros; só não eram escravizados da mesma maneira mas talvez de ordem pior que a dos negros, porque eram estranhos e desprezados dentro da sua própria pátria. Quando eu ouvi há poucos dias - vou encerrar o meu aparte - essa figura admirável de brasileiro, o homem de "Casa Grande E Senzala", Gilberto Frei­re, falando na televisão, com os seus 80 anos, congratulando-se con­sigo mesmo, pela beleza e oportunidade de seu trabalho que correu o mundo, ressaltando a raça nova que nasce no Brasil, essa raça que ele considera, por todos os modos, e por todos os motivos, al­guma coisa de que ainda o mundo há de se honrar, produto da miscigenação do negro, do português, do branco e também de ou­tras raças: como árabes, indianos e de todas as partes do mundo, raças muitas que foram escravizadas de uma maneira ou de outra. Nós verificamos que não tem mais sentido a discriminação e temos razão de sobra, nós brasileiros, para nos honrarmos de sermos mis­turados, por todos os sangues, para podermos apresentar ao mundo um homem de uma Nação onde todos nasçam em qualquer parte de mundo, aqui encontram o mundo de todos, aqui é o lugar de um mundo só, para exemplo. Por isso eu me congratulo com V.E: principalmente destacando a figura extraordinária do negro, este negro que nós nos acostumamos a amar, sobretudo, quando crian­ça, quando eles ajudavam as nossas mães, nos dando carinho e muitas vezes nos dando o leite, e quase sempre nos dando muito amor. Congratulações a V. Ex:
O SR. ITAMAR FRANCO - Muito obrigado, Senador Gabriel Hermes, pela intervenção sempre lúcida de V. Ex: E ao destacar exatamente o negro, como diz V. Ex.:, destaco também os movi­mentos que se processam no Brasil em favor do negro.
Continuo, Sr. Presidente:
Em Minas, São Paulo e Brasília, nos últimos meses, realiza­ram-se encontros nesse sentido.
Brasileiros de todas as origens, reunidos no Triângulo Mineiro, por ocasião da Semana da Pátria do ano passado, ofereceram à Nação a "Carta de Uberaba", verdadeira proclamação de brasili­dade, que os Poderes constituídos devem examinar e meditar com atenção e interesse. Trata-se de documento sério, de forma supra­partidária.
Deram, com esta iniciativa auspiciosa, mais uma prova de to­lerância c cordialidade, tão próprias daqueles que fizeram a fortuna da coroa portuguesa e construíram a riqueza deste País.
Se o elemento negro foi, inquestionavelmente, o fator indis­pensável e presente em todos os ciclos econômicos do Brasil, desde o cultivo da cana-de-açucar à cultura do café, não se pode desconhecer que, com a descoberta das minas auríferas na região das Gerais, lá também, no nossso Estado, de bravas e heróicas lutas em prol da liberdade, o elemento negro, repetimos, participou ativa­mente no povoamento e progresso das terras mineiras.
Não foi, pois, aleatória ou gratuita a escolha de uma comuna de Minas - Uberaba - para local do primeiro encontro dos negros brasileiros. É em Minas Gerais que vamos constatar, nos registros da História Pátria, a figura indomável de Chico Rei, o negro que se notabilizou por não se deixar escravizar, por reconhecer que o homem nasce livre e assim deve permanecer.
O clamor da "Carta de Uberaba", pela causa e valores eternos ali contidos, iria, obviamente, frutificar-se. De 23 a 25 de novem­bro passado, já em terras paulistas, negros de diversos Estados encontraram-se em Ribeirão Preto para estudar e debater os seus problemas e a melhor forma de participação no processo histórico do País, tendo como inspiração e guia a figura maior de Zumbi, proclamador da República de Palmares.
Indagou-se muito nesses conclaves as razões da pouca parti­cipação do homem de cor nos destinos e na estrutura social da co­munidade.
Ora, se somos uma "sociedade multiracional", ética e cultural­mente falando; se temos convicção de que nosso embasamento eco­nômico calcou-se, fundamentalmente, sobre o braço negro; se "o senhor brallco já não pode permitir a marginalização daqueles que outrora guardava na casa grande e senzala", como afirma o sociólogo Gilberto Freire, que está, neste mes, em meio a várias homenagens, completando 80 anos, todos dedicados ao estudo da miscigenação e da cultura afro-brasileira.
O Sr. Leite Chaves - Permite V. Ex: um aparte?
O SR. ITAMAR FRANCO - Com muita honra.
O Sr. Leite Chaves - O nosso Partido, o Partido Trabalhista Brasileiro, se associa às homenagens de V. Ex: E como todos sa­bem um dos itens do nosso programa partidário é este, a luta contra a discriminação racial. Poucas raças serviram tanto ao Brasil quan­to a negra; e poucas foram tão violentadas quanto ela. Aliás, um dos episódios mais dolorosos da História do Brasil é aquele da fu­ga dos negros dos engenhos, já na proximidade da época da liber­tação, quando eles se juntaram no Quilombo dos Palmares para a defesa daqueles resíduos de liberdade que aguardavam alcançar um dia. E foi Domingos Jorge Velho, comandando a repressão, que pela primeira vez usou no mundo a guerra bacteriológica. Ele si­mulava prender negros contaminados de varíola, em seguida incita­va-os à fuga, para que, sendo homiziados pelos outros escravos no Quilombo dos Palmares tivessem a doença difundida por toda a comunidade. Foi aqui no Brasil onde primeiro se usou a guerra bacteriológica contra os pretos. Libertos, eles continuam margina­lizados. Oitenta por cento das favelas são constituídas de pretos, porque não se deu uma oportunidade maior para que economica­mente eles se soerguessem. Acho que já é tempo de se fazer justiça ao preto no Brasil. A primeira delas é a eliminação dos resíduos preconceituosos, porque somos um País de mestiços. E, aliás, é nessa miscelânia que está a força brasileira. Em seguida, uma ação mais eficiente no que diz respeito à sua recuperação econômica ou, pelo menos, uma possibilidade igualitária para que eles possam soerguer-se economicamente e dar a sua melhor contribuição ao País. Muito obrigado.
O SR. ITAMAR FRANCO - Nobre Líder do Partido Traba­lhista Brasileiro, Senador Leite Chaves, muito obrigado pela in­tervenção de V. Ex?- É exatamente sobre determinados aspectos, Senador Leite Chaves, que ouso hoje chamar a atenção do Senado Federal para o problema.
Sr. Presidente, já vou encerrar.
Por que então, excetuando-se as individualidades marcantes que ascenderam a posições de destaque e prestígio, o negro, o mu­lato, o mestiço, enfim, a grandc e esmagadora maioria do povo bra­sileiro, lamentavelmente, ainda não participa das decisões nacionais e não usufrui, como devia e merece, dos benefícios do progresso?
É, pois, em tempos de abertura que esses questionamentos de­vem ser debatidos, aqui no Congresso, nas praças públicas, nos púl­pitos, nas cátedras e na Imprensa, o que ora fazemos desta Tribuna.
Discutirmos a situação do negro no âmago da coletividade. Ve­rificarmos os erros, as omissões, os preconceitos que o têm levado à marginalidade social, econômica e cultural, desumana, sob prisma pessoal, e desagregadora da nacionalidade, ante os interesses cole­tivos maiores, para, então, capacitarmos suficientemente na via­bilização de soluções efetivas que a questão requer.
Faze-lo, enfim, co-partícipe dos frutos da riqueza, ensejando­lhe oportunidades, em condições iguais, de acesso à educação, em todos seus níveis, à ciência, a empregos e postos de relevo na ad­ministração pública e particular e que, garantindo-lhe remuneração condigna em seu trabalho e profissão, tenha moradia própria, saúde e lazer. Parodiando conhecida canção popular, diríamos que o ne­gro precisa ter vez!
A sociedade brasileira só será, realmente, aberta, justa e equâ­nime quando agregarmos todos os seus segmentos - como os ne­gros - ao desenvolvimento da Nação.
Em consonância a essas reflexões e atendendo às aspirações e sentimentos do Brasil mestiço, solicitamos que integrem os Anais do Senado Federal a "Carta de Uberaba" e o documento elaborado em Ribeirão Preto, denominado "O negro sob a visão política do estadista da República dos PaI mares no Brasil de hoje".
Muito obrigado, Sr. Presidente. (Muito bem! Palmas.)

O NEGRO NO BRASIL - Brasília 1980

Discurso do Senador Itamar Franco


Sr. Presidente, Srs. Senadores:
"Povo! Povo infeliz! Povo, mártir eterno Tu és do cativeiro o Prometeu moderno."
Iniciamos com Castro Alves nosso pronunciamento esta tarde.
Ninguém melhor do que o poeta encarna, através dos tempos, a luta e o símbolo da raça negra no Brasil, que a heroificou, tão ge­nialmente, nos candentes versos de "Os Escravos". E o assunto que nos traz a esta tribuna fixa-se, essencialmente, sobre a posição do negro no mundo de hoje, especialmente na sociedade brasileira.
A última sexta-feira foi uma data particularmente significativa para os Direitos Humanos.
E nós que, nesta Casa, ao longo desses anos de atuação, ternos veiculada com insistência a temática dos Direitos Humanos, não poderíamos, no momento, ficar silentes ante urna de sua principais questões, qual seja, a segregação racial.
Comemorou-se, no dia 21 de março, com grande júbilo para aqueles que buscam e anseiam pelos Direitos do Homem, o Dia Internacional para Eliminação da Discriminação Racial “, instituído pela Organização das Nações Unidas, através da Resolução no 2.506, de 21 de novembro de 1969, aprovada em Assembléia-Geral:
"Conclama-se a todos os Estados e organizações a come· morarem com cerimônias solenes o "Dia Internacional para Eliminação da Discriminação Racial", em 21 de março de 1970 - o décimo aniversário do massacre de Sharpeville, em solidariedade ao povo oprimido da África do Sul e dar especiais contribuições para este dia em apoio à luta con­tra o apartheid ..
O ódio racial - sabemos todos - no curso da História, tem arrastado muitos povos ao desespero e à luta fratricida, infringindoinenarráveis sofrimentos a milhões de pessoas. O terror nazista contra os judeus, em tempos recentes, constituiu um tenebroso tes­temunho.
Séculos e séculos, entretanto, contemplam o racismo do homem branco sobre o negro na África.
A escravidão negra - abjeta, aviltante e desumana - brutali­zou o homem opressor e racista e aninializou o negro escravo,· co­mo se ele não tivesse sentimento, nem alma.
Essa nódoa infamante e cruel, praticada largamente pelos im­périos colonialistas europeus, a partir do século XVII, marchou às terras das Américas, que foram "adubadas" com o· sangue e suor do negro subjugado.
Terminado o tráfico africano, esse mesmo colonialismo implan­tou-se definitivamente em toda a África, submetendo, pela força e violência, os povos· e tribos da raça negra.
Após a II Guerra Mundial, sob a perspectiva de nova reali­dade internacional, os movimentos de libertação nacional surgem com grande vigor e pujança no continente africano e asiático.
Os povos começam a se libertar de um colonialismo anacrô­nico e anti-histórico e as potências imperialistas européias, muito a contragosto, compreendem, enfim, o término daquela época.
Algumas, inteligentemente, cedem; outras, mais recalcitrantes, teimam em resistir à implacabilidade do processo histórico.
"Toda noite escura tem um alvorecer brilhante", sentencia an­tigo provérbio persa. A independência das novas nações africanas ­consolidada na década de 60 - torna-se um imperativo e realidade inconteste naquele continente ..
Mas se o colonialismo morrera, nem assim a opressão da mi­noria branca. - descendente de antigos colonos - sobre a maioria negra, deixava de se impor, como se impõe ainda na África do Sul, na Namíbia e até muito recentemente na Rodésia - Zimbabwe.
Aí está o odiado apartheid, imposto pelo regime escravagista de Pretória, a desafiar a ONU e os povos que desejam a paz, a igualdade entre as raças e a liberdade.
Mas a História, Sr. Presidente, não se faz, por mais que se tente, com retrocessos e obscurantismos. Prova-o a edosão de movi­mento libertário nacionalistas, como a independência das ex-colô­nias portuguesas de Angola, Moçambique, Guiné e Cabo Verde, e, já agora, a verdadeira revolução pelo ocorrido na Rodésia-Zimbabwe, com a eleição do líder Robert Mugabé e de uma maciça maioria negra para dirigir o país.
A vitória de Mugabé, em pleito direto e livre, transcende a ape­nas uma disputa eleitoral e extrapola, de muito, a uma questão in­terna naquela nação.
Exemplifica ela, na verdade, e de forma grandiosa, para o resto da África, a fraternidade racial e liquida com regimes racistas in­toleráveis, como o de Ian Smith que tanto infelicitou e estigmati­zou milhões de negros rodesianos.
O Sr. Gilvan Rocha - Permite V. Ex: um aparte?
O SR. ITAMAR FRANCO - Pois não, nobre Senador.
O Sr. Gilvan Rocha - No momento em que V. Ex: chama a atenção do Senado da República, sobre o problema racial, no mun­do, quero me congratular com V. Ex: pela oportunidade do assun­to. Todos nós sabemos que o Brasil não possui agudamente este problema, mas, nem por isso deixa de possuí-Io. A nossa decan­tada democracia racial, de vez em quando, se vê torpedeada por discriminações que um político moderno como V. Ex: não pode conceber de maneira alguma. Eu desejo acompanhar a esteira do pensamento de V. Ex:, dizendo que é nosso dever repelir esse re­crudescimento racial que parece estar vindo como um dos fenô­menos do fim do século XX. E dizer que, em nosso País, todo o cuidado é pouco no sentido de que não se deixe de proteger as minorias raciais, as minorias, aliás, de uma maneira geral. Eu, in­clusive, incluo nesse tipo de minoria, não uma minoria numérica, mas, uma minoria na participação da vida nacional, as mulheres. A discriminação sexual também é um fato no Brasil. Esta semana mesmo, nós vimos, escandalizados, uma notícia de que uma senhora teve que recorrer aos Tribunais Superiores para assegurar o seu lugar concurso público de Escrivã de Polícia, e mesmo assim não conseguiu a vaga que era dela por direito. Vê V. Ex: que ainda existem distorções do ponto de vista de discriminação neste País, que tem tudo para ser exemplo no mundo na democratização das suas minorias. Este é um assunto atual, sério e que V. Ex: levanta com a maior propriedade. Queira receber minha solidariedade e apoio ao discurso que tão brilhantemente V. Ex: está proferindo.
O SR. ITAMAR FRANCO - Muito obrigado, nobre Líder, Se­nador Gilvan Rocha, pela intervenção de V. Ex: a qual tão bem caracteriza o processo ainda hoje existente no mundo da discrimi­nação racial.